Música e Magia, Parte V: Teosofia, Jazz e a Derrubada do Status Quo

Texto por Tiago de Lima Castro

Nessa série sobre a relação entre a música e a magia no ocidente, já vimos a forma como música e magia eram a mesma coisa na antiguidade, como ela transformou o pensamento místico e até o científico, como ela foi profundamente alterada após a idade média e como os músicos livres começaram a afetar diretamente o pensamento oculto. Nesta última parte, entenderemos como o pensamento mágico afetou diretamente a música dos últimos dois séculos, e como podemos, hoje mesmo, enfrentar o status quo e alcançar transcendência através da música.

O Gênio e o Daemon

A concepção do artista enquanto gênio é um resgaste do sentido antigo da palavra daemon, nos tempos de Platão, que era uma semidivindade entre o humano e o divino, conduzindo o primeiro ao segundo. O músico, o artista, era o próprio gênio em carne, produzindo obras que levassem os ouvintes, através da fruição estética, ao divino, e mais que isso, ao absoluto. Novamente, um discurso sofisticado que resgata práticas xamânicas com a música, mas agora nas salas de concerto. Os compositores e musicólogos continuavam os processos pelos quais a música atingia tais fins, agora focados no desenvolvimento formal do material musical, entendendo forma como a estrutura interna da música.

A Influência de Blavatsky

O compositor pós-romântico Alexander Scriabin, ao influenciar-se pela teosofia de Blavatsky e pelo simbolismo, buscou em suas últimas obras provocar o alvorecer da Nova Era através da mistura dos sons instrumentais com o piano de luz, criar sons e luzes tão fortes, com vibração tão intensa, que levassem a uma transformação da realidade como um todo. Scriabin praticava os efeitos da sinestesia, a mistura de sentidos, como demonstra sua tabela relacionando cores e sons. Sua última obra não finalizada se chamaria Mysterium, e seria uma gigantesca cerimônia mística de 6 dias realizada na Índia, pela sociedade teosófica, terminando numa grande dança orgiástica e transes místicos, a qual efetivamente tensionaria a vibração de nossa realidade, de forma a levá-la a outro patamar. O esboço de parte do primeiro dia foi feito, mas o compositor não sobreviveu a tempo de realizar a obra como um todo.

O desgaste do romantismo, como os paradoxos que este levou, levou a uma concepção no século XX e agora XXI da música como o significante ausente de significado, ou seja, há uma estrutura musical que tem efeitos sobre os ouvintes. Mas tal significado não é unívoco; cada ouvinte é afetado de forma particular.

Demolindo o Status Quo com a Música

Filósofos como Theodore Adorno, membro da Escola de Frankfurt, o qual também era compositor, musicólogo e foi aluno do compositor Alban Berg, por exemplo, analisavam que a Indústria Cultural infantiliza o ato da escuta ao tornar toda música calcada nas mesmas estruturas que não surpreendem o ouvinte, que se satisfaz ao escutar a mesma estrutura repetida, e por isso é infantilizado, o que seria essencial ideologicamente para manutenção do status quo. Adorno aposta nas técnicas de música de vanguarda de sua época, pois estas, ao proporem novas estruturas musicais, levariam seus ouvintes a uma fruição que potencializaria novas formas de pensamento e de vida por não reafirmarem as estruturas vigentes.

Adorno argumenta isso de forma não metafísica, no entanto, pensando a escuta como um ato mágico, afinal, como algo sem palavras leva a dançar, a sentir coisas e tudo mais, e esse potencial seria castrado pela indústria cultural e necessitaria de resistência e novas experimentações para abrir a cabeça por estruturas não conhecidas antes que proponham novas formas de vida e pensamento. Pensando a magia como atos que visam alterar a realidade, a confiança de Adorno da música de vanguarda não deixa de ser uma concepção mágica da própria música como tamanho potencial disruptivo para afrontar o status quo. Para além dos preconceitos musicais de Adorno, sua análise não deixa de ser norteada por uma concepção mágica da música e da arte.

Uma Ponte para o Absoluto

Vladimir Jankélévitch, filósofo e musicólogo discípulo de Henri Bergson, também proporá a música como um acesso metafísico capaz de levar o ouvinte a experiências com o absoluto e com a própria duração, o aspecto movente da realidade, através da capacidade de encanamento desta, termo usado pelo próprio filósofo.

Muitos músicos e teóricos trabalharam com a música no século XX com esse norte transformador, seja calcado em visões não-metafísicas desta ou mesmo em visões metafísicas, e até com influências orientais. Pessoas como John Cage, Karlitz Stockhausen, Luciano Berio, John Coltrane, Hermeto Pascoal, entre muitos outros, trabalham com concepções musicais visando estas alterações de si e da própria realidade ao redor, através de pesquisa musical.

São João Coltrane

O exemplo de Coltrane é bem interessante. Além de estudar múltiplas tradições, como cristianismo, islamismo, sufismo, Krishnamurti, hinduísmo, astrologia, ioga, numerologia, matemática, Platão, até um pouco de candomblé, hermetismo, entre outros, passou a compor e estruturar suas peças com base em um círculo em que iria modulando de forma a estas desenharem um pentagrama internamente. Tinha uma forte concepção na possibilidade de alterar a realidade à sua volta com estruturas musicais que levassem a mente por novos caminhos e experiências, sendo esse novo o que possibilitaria o contato com o divino. Esse grande jazzista praticamente atuava como um mago dos sons, daí o estranhamento inicial ao ouvir seus discos. Este seria o estranhamento com novas estruturas e novas formas de pensamento, em que se permitir experienciá-las é o processo de saída ao novo, de experienciar novos sons e novas realidades, e o próprio divino. É curioso como essa concepção a experiência com o todo e o divino deve-se a seguir estruturas ainda não pensadas e vivenciadas, algo expresso nos últimos discos, em que o contato com o impensado, o novo, e não a tradição, é que seria o real contato com o divino. Percebam que o mergulhar nestas estruturas musicais, para Coltrane, seria em si um ato mágico, e não a meditação com auxílio de sua música, pois viajar na própria música seria em si mesmo um ato mágico e místico.

Cifras e Sigilos Musicais

Uma técnica antiga é usar a relação entre as setes notas musicais: dó, ré, mi, fá, sol, lá, si; com as letras correspondentes: C, D, E, F, G, A, B – para os alemães o H represente o sib –, de forma a mandar mensagens cifradas em suas músicas, como Bach que sempre construía seu sobrenome em todas as peças. Imaginem a possibilidade de construção simbólica de melodias com mensagens cifradas, quiçá sigilos musicais, e quantas coisas a imaginação propiciar e as práticas demonstrarem.

Do Xamã ao Maestro

Música e Magia nasceram como irmãs, ora auxiliando em processos de transes, ora propondo em si mesmas novas realidades. Do xamã ao maestro, do músico da capela ao saxofonista de Jazz, a música ainda se coloca algo não compreendida. A antiga questão de como tais sons podem provocar estados e movimentos em nós é algo não respondido. Talvez a questão para o praticamente da magia contemporânea seja: Você se permite experienciar novas estruturas e experiências musicais ou prefere manter-se no campo seguro daquilo que já conhece e aprendeu a escutar? Se a escuta é em si um ato mágico, porque deixar ser levado somente pelo que aprendeu na adolescência como boa música? Se toco um pouco de música, porque não experimentar coisas que me levem para novas experiências e quiçá, experimentar no fazer musical a criação de novas práticas mágicas?

Tiago de Lima Castro é professor de filosofia e música, ou seja, um doido que abraçou sua ignorância. É articulista do Música e Sociedade e tem um podcast sobre música, filosofia e outras loucuras. Acompanhe Tiago nestes links: Twitter / TianixPodcast / Música e Sociedade

Imagem: Jimmy Baikovicius

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