Música e Magia, Parte IV

Música e Magia, Parte IV: Da Música Barroca ao Cair das Luzes

Texto por Tiago de Lima Castro

Nessa série sobre a relação entre a música e a magia no ocidente, já vimos como música e magia se misturavam na antiguidade, como ela influenciou a ciência e a religião e como ela foi profundamente alterada no renascimento. Hoje discutiremos como os músicos conseguiram escapar do mecenato e começaram a influenciar diretamente o pensamento mágico e oculto do ocidente.

Música Barroca e Sonhos Demoníacos

Entre os séculos XVII e XVIII, período denominado barroco, a prática composicional se dá em cima de teorias da retórica musical. Após Descartes publicar a obras As Paixões da Alma, a qual propõe uma compreensão racional dos processos dos afetos ou paixões, os músicos passaram a estudar os processos melódicos harmônicos que movimentassem determinados afetos. Essa pesquisa musical está na base das obras de Corelli, Bach e Vivaldi, por exemplo. Essa pesquisa iniciada no renascimento terá um grande desenvolvimento durante esse período. Poderíamos chamar tais estudos e práticas de mágicos, trazendo a concepção de Ficino, no sentido de buscarem compreender como usar a música para atuar sobre a realidade; no caso, para movimentar afetos específicos nos ouvintes. Essa prática caminhou com fortes relações numéricas, de maneira a descrever situações, afetos, seja na religiosa como as Paixões compostas por Bach, seja nas óperas, seja na música instrumental como Vivaldi fez ao descrever as Quatro Estações em sua composição do mesmo nome.

Nesse processo houve associações diretas entre sons e cores, músicos como Tartini sonhando com o diabo e este ensinando-o sua famosa Sonata Diabólica, entre outras coisas. Teóricos como Jean-Philippe Rameau, além de definir o nosso conceito moderno de acorde, buscou racionalizar estes processos pelos quais a música movimenta afetos. Muitas teorias, sempre ligadas à prática, vão concorrer e existir simultaneamente sobre estes processos, sendo comum o estudo destas para entender o que os compositores visavam com sua escrita musical como para melhor executá-la. A contínua relação entre teoria e prática, investigação e teorização, sempre compreende a música como capaz de mover afetos específicos em seus ouvintes, e é essencial para entender a produção musical barroca e o início do classicismo.

A Liberação dos Músicos

Os músicos eram empregados das cortes ou das igrejas, de maneira que tais pesquisas estão diretamente ligadas à sua capacidade de exercer sua função. Se um compositor escrever uma ópera sobre uma estória trágica de amor e não conseguir que os ouvintes sintam tais afetos que o texto propõe, então este é medíocre e não tem trabalho, sendo o mesmo raciocínio válido para músicos que trabalham em âmbito religioso. Se o compositor de música instrumental, ainda não tão valorizada, for incapaz de encantar, para não dizer enfeitiçar, as pessoas a seu entorno para estas dançarem, não poderá sobreviver de sua profissão. Um professor de música tem a função de passar adiante os conhecimentos teórico-práticos para que seus alunos sobrevivam de sua própria prática mágica. Daí não haver exatamente uma ordem secreta de músicos magos ou músicos bruxos, pois como simples trabalhadores da nobreza ou dos cleros, sua pesquisa e prática mágica está diretamente ligada à sua atividade profissional, mesmo que o uso de estruturas numéricas fosse utilizado, por exemplo, o resultado da magia musical na prática estava na sobrevivência nesta profissão.

No classicismo musical, época de músicos como Haydn, Mozart e Beethoven, a música instrumental passa a ser valorizada e chegamos ao que se denomina autonomia musical, ou seja, a música é vista como uma arte autônoma na qual os sons realizam um discurso puramente sonoro, com uma racionalidade intrínseca, na denominada forma sonata, estrutura fundamental das sinfonias. Neste contexto, se aceita de forma mais plena, após longas investigações musicais e discussões teóricas, que a música puramente instrumental movimenta afetos e pode oferecer uma experiência simultaneamente sensorial e racional, unindo experiências diferentes. Os músicos passam a serem profissionais liberais não dependentes de um nobre exclusivamente, sendo este um longo processo com certa ajuda da Revolução Francesa, mas que será realmente concretizado no século XIX.

Mozart, Mesmerismo e Rosacrucianismo

Um dos primeiros locais em que Mozart se apresentou na infância foi na casa de Franz Anton Mesmer, criador das teorias e práticas do magnetismo animal. Mesmer também compôs para a harmônica de vidro, um instrumento que tem o som de copos de cristal sendo tocados, visando favorecer a ação curativa do magnetismo animal. Mozart aprendeu este instrumento, compondo para ele, como inserindo Mesmer e outras referências da Rosa Cruz em suas óperas. Percebam que Mesmer ainda trabalha com a noção dos efeitos da música sobre a saúde, algo importante dentro de seu sistema do magnetismo animal. As obras de Mesmer estão traduzidas e compiladas em um único volume pelo Paulo Henrique Figueiredo no livro Mesmer: a ciência negada e os textos esquecidos.

O desenvolvimento da forma sonata vai colocar em dúvida as teses sobre determinados procedimentos musicais movimentarem determinados afetos. Como tal tema foi sumamente estudado por muitos compositores, começou-se a perceber que a causalidade não era tão clara quanto parecia. Mesmo a música exercendo efeitos sobre os ouvintes, inclusive auxiliando processos de transe ou estados de alegria, tristeza, entre outros, criar relações de causalidade estava tornando-se difícil, como também se foi percebendo que os afetos não têm uma causalidade tão clara e evidente, algo que levará a psicanálise a estudá-los pela via do inconsciente, entre outras coisas. Não obstante o enigmático efeito da música sobre o indivíduo ainda espantar e promover especulações.

As Luzes se Apagam

No Romantismo, tais especulações levaram a compreender que a música, através do trabalho formal do compositor, movimentaria um afeto puramente musical, que ligaria o ouvinte ao próprio absoluto.  A ideia de uma orquestra com todos de preto e o ambiente apagado servia para que os ouvintes se desligassem do mundo à sua volta e experienciassem o puro som, o absoluto em si mesmo. O compositor Richard Wagner, em suas especulações estéticas, defendeu esta prática como a de fechar os olhos ao escutar música, em um texto sobre Beethoven, visando este encontro com o absoluto.

Em pleno momento em que a ciência positiva emerge como única forma de conhecimento possível e os estados vão tornando-se laicos, pelo menos no papel, a arte romântica buscou o clima renascentista de convívio do científico com o místico, enquanto a música é vista com a porta para o próprio absoluto em si mesmo. Enquanto surge o moderno espiritualismo, a magia e a bruxaria moderna, a música é também uma prática mística em si mesma.

Na próxima (e última) parte desta série, veremos como a teosofia afetou diretamente a música contemporânea, chegando até ao Jazz e outros estilos mais recentes, e como é possível usar a música para demolir o status quo e alcançar transcendência.

Tiago de Lima Castro é professor de filosofia e música, ou seja, um doido que abraçou sua ignorância. É articulista do Música e Sociedade e tem um podcast sobre música, filosofia e outras loucuras. Acompanhe Tiago nestes links: Twitter / TianixPodcast / Música e Sociedade

Música e Magia, Parte IV

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