Música e Magia, Parte II

Música e Magia, Parte II: Pitágoras, Ciência e Cristianismo

Texto por Tiago de Lima Castro

Na primeira parte desta série, discutimos como a música está ligada à magia e a estados alterados de consciência, e chegamos até os Órficos, a primeira ordem esotérica comandada por magos e regida pela música. Hoje falaremos dos famosos pitagóricos, da influência de Aristóteles e de como a demonização da música influiu na constituição do Cristianismo e até mesmo na ciência.

Pitágoras: Unindo Matemática, Música e Magia

Os pitagóricos, assimilando elementos do pensamento órfico como de sua organização enquanto ordem esotérica, criaram uma ordem em torno da figura de Pitágoras. Este teria descoberto as relações numéricas entre as cordas afinadas da Lira, de maneira que partindo de uma corda afinada, em dó por exemplo, produzo sua oitava, um dó mais agudo, ao tanger esta corda segurando no meio, na relação numérica de 1/2; na mesma corda dó, ao tangê-la na relação numérica 2/3, tenho sua quinta, a nota sol; como na relação 3/4 a sua quarta, a nota fá. Eis a origem de tetraktys pitagórica: o 1, 2, 3 e 4, que somados dão 10. De um som original deriva-se todas as demais notas da escala musical, como do 1, do uno, toda a realidade se deriva, sendo o Uno simultaneamente som e número.

Dessa maneira, os pitagóricos descobrem a estrutura numérica da música e como esta atua sobre todos os seres e a própria realidade. Daí concluem que o número é a arché, ou seja, o princípio que estrutura toda a realidade. Os pitagóricos produziram outras coisas, contudo, nem sempre é mencionado que o passo para compreender o cosmo como de essência numérica se deu ao perceber a intrínseca relação entre música e o número, pois este último explica a razão dos poderes da primeira sobre a própria realidade. Afinal, se tudo é número e este se manifesta enquanto harmonia, música, portanto a realidade em si é também musical, daí a magia dos números estar diretamente ligada à magia sonora.

Platão e os Perigos da Música

Platão, principalmente na República e nas Leis, abordará os perigos da música; afinal, ao atuar sobre a alma dos indivíduos, sua psyché, pode tanto propiciar a estabilidade e longevidade da cidade-estado, da pólis, como pode levá-la a seu fim. Platão assimila a tradição dos poderes mágicos da música com a leitura dos pitagóricos e de Damon, o qual defendia que Atenas mantivesse a tradição musical para que a cidade não se perdesse em meio às novas práticas. É interessante que ele propõe critérios para se utilizar determinadas harmonias, mais ou menos o que atualmente denominamos como modos gregos, tendo como critério o éthos que cada modo movimenta no ouvinte. Por exemplo: para despertar a coragem era necessário um modo específico, com determinada estrutura rítmica para chegar a esse fim. De forma que a própria tradição estudava procedimentos técnicos para que a música influísse sobre a realidade.

Aristóteles e a Demonização do Prazer

Aristóteles seguirá Platão, naturalmente com algumas nuances ao propor o aspecto do prazer que a música provoca. Contudo, houve quem defendesse a ideia de que música é somente música e não teria tamanhos efeitos. No entanto, o debate dá fortes indícios de que a concepção mágica da música fosse preponderante.

Com o cristianismo, a música continuará como parte essencial das práticas, como naquilo que ainda hoje denominamos como missa. A tradição judaica já atribuía efeitos mágicos à música, sendo que os próprios salmos tinham, muito provavelmente, suas melodias específicas. Dessa maneira, a confluência entre o pensamento greco-romano com a tradição judaica do cristianismo também passava pela confluência da ideia de poderes mágicos e música.

Música no Cristianismo

Agostinho de Hipona refletiu tanto sobre os riscos que a música trazia. Afinal, ao mesmo tempo que ajudava a entrar em estado de oração, ela poderia levar a fruição somente de sua beleza, como também verificou que na prática musical há um tempo interno ao indivíduo diferente do tempo externo o qual estruturamos nossas ações cotidianas. Essa separação, essencial ao pensamento agostiniano, levou a pensar o como entrar em contato com essa temporalidade interna era encontrar a eternidade que é o tempo de Deus. Permitindo a indulgência do leitor sobre o anacronismo que faremos, o sofisticado argumento de Agostinho coloca em belos termos a prática xamânica de usar ritmos e dança para acessar o outro mundo, seja este qual for. Não à toa, que Agostinho escreveu sobre as estruturas rítmicas e melódicas para que a música seja bem construída, quer dizer, tenha os efeitos de ligação com o divino esperado, ainda em outras palavras, os efeitos mágicos desta.

Os Três Tipos de Música…

Boécio, mais ou menos seu contemporâneo no século IV, escreverá a obra De Institutione Musica, que funcionará como paradigma musical ocidental até meados do século XVIII. Trata-se de uma paráfrase de uma obra de Nicômaco, o qual discute a tradição pitágorica e de Aristóxeno, um importante teórico musical da antiguidade e discípulo de Aristóteles. Primeiramente o autor propõe haverem três tipos de música: a primeira é a música cósmica, ou mundana, que é a própria ordem do cosmos; a música humana, que é o equilíbrio espiritual e físico de cada um de nós; e a música instrumental, aquela que nós produzimos, sendo a voz também um instrumento. Nessa concepção, nossa música é naturalmente inferior e deve imitar a música cósmica de maneira a harmonizar nossos corpos e espíritos, produzindo saúde e ascensão do ouvinte ao divino.

A música que produzimos é inferior; afinal, a música cósmica é criada por Deus, e a função de a produzirmos é facultar que esta coloca nossa música humana em ordem para nos ligar ao criador através dessa ligação com o cosmo. Percebam uma concepção praticamente alquímica da música. Naturalmente, o estudo dessa precisa ser feito para seu uso não ser corrompido, pois aquilo que pode harmonizar nossa música humana, poderia desarmonizar como uma maldição, provavelmente também cantada.

… e os Três Tipos de Músicos

Boécio também proporá a existência de três tipos de músicos: o que executa a música, cantor ou instrumentista, somente através da prática e não a razão; o compositor e poeta, o qual produz a música instrumental através de certa intuição e não com a razão; e o que avalia a performance e composição, sendo este que utiliza efetivamente a razão através da ciência musical. Há diversas consequências deste pensamento, então iremos por partes.

Primeiramente, essa concepção, somada a outros escritos sobre matemática de Boécio, colocará a música como parte da matemática, em seu estudo teórico, sendo uma arte liberal, ao mesmo tempo que esta é uma arte mecânica, ou seja, ligada à prática. Algo prático e teórico simultaneamente nesse contexto é uma exceção, colocando a música em uma espécie de não-lugar, pois enquanto as demais disciplinas ou são liberais ou são práticas, mesmo havendo certas relações, a música é ambas.

Sem Racionalidade, Sem Valor

A ideia que somente se utiliza da razão o avaliador, o crítico musical, traz uma concepção negativa sobre o músico prático e o compositor, por estes não se utilizarem da razão segundo Boécio, o que ainda está presente em concepções populares sobre música ainda em nossos dias. No entanto, do ponto de vista prático, há certo receio dos usos da música. Afinal, esta poderia até corromper a música humana, a saúde, então essa visão negativa não deixa de ser um temor e uma forma de controle e poder sobre aqueles que dominam a magia musical. A concepção do compositor e poeta  fazer música através der certa intuição, a qual Boécio não explica muito bem, indica o processo místico dessa – afinal, imitar ou expressar a própria música cósmica como uma tarefa puramente racional significaria uma ascensão através da razão ao cosmos e a Deus. Daí, onde entraria a fé? Novamente, dizer que o compositor utilizaria a razão seria considerá-lo algo capaz de entender os processos para se ligar diretamente a Deus e ao cosmo; algo, talvez, perigoso para a fé? Para não analisar somente pelo prisma do controle, a ideia de intuição também implica que o estado do compositor não é aquele cotidiano, talvez exigindo um processo de transe místico para se ligar ao cosmo e a Deus, e daí compor. De qualquer maneira, a mística musical está presente.

Outra consequência é a possibilidade de compreender racionalmente as estruturas musicais e seus efeitos, sendo a maior parte da obra dedicada a isto. Dessa maneira, discutir estruturas matemáticas da afinação, da construção das escalas e ritmos é acessar um pouco a própria música cósmica. De forma que há possibilidade de analisar racionalmente os efeitos místicos da música, segundo Boécio.

Impacto na Ciência

Há ainda a consequência de que os astrônomos, para defender suas teorias, algo já existente na antiguidade, precisam também utilizar argumentos musicais para defender suas ideias sobre os astros. Se a astronomia, e mesmo astrologia, estuda as relações numéricas da música cósmica, então sua argumentação de novas teses astronômicas implica utilizar de argumentos musicais para comprovar suas teses. Copérnico, Galileu Galilei, filho do músico Vicenzo Galilei, e mesmo Kepler, utilizaram toda uma argumentação musical para defender suas ideias. Voltaremos a eles mais adiante.

Na próxima parte desta série, veremos como a introdução da polifonia (execução simultânea de mais de uma melodia), a influência dos árabes e o mecenato renascentista reforçaram a posição da música como magia após a Idade Média.

Tiago de Lima Castro é professor de filosofia e música, ou seja, um doido que abraçou sua ignorância. É articulista do Música e Sociedade e tem um podcast sobre música, filosofia e outras loucuras. Acompanhe Tiago nestes links: Twitter / TianixPodcast / Música e Sociedade

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