O terror cósmico de Augusto dos Anjos em paralelo com Lovecraft

Lovecraft é conhecido por sua fantasia de temática cósmica. A interpretação mais recorrente de sua obra recai no receio humano perante a indiferença do universo. É dito que Lovecraft era cético, apesar de seus escritos terem profundas raízes místicas, inclusive comparadas às de Crowley, segundo Kenneth Grant.

No Brasil temos um poeta, que de forma muito similar Lovecraft, tocou no terror cósmico: Augusto dos Anjos. Ambos autores abordam o misticismo de forma cientificista, ambos se curvam (ou desprezam) a indiferença do universo, ambos traduzem pavores inconscientes.

A fragmentação e o caos, o Nirvana e o pulsar inescrutável da vida da matéria, a unidade e a metamorfose, o horror à incompletude e a ataraxia permanente ante as formas que não chegam a ser, a fala paralisada no molambo da língua, a fatalidade do apodrecimento e a impossibilidade de iludir a Morte, tudo isso e o riso irônico ante a carne que desmancha e o verme que o devora – eis os acordes que Augusto dos Anjos vai tirando de sua lira estacionada nas cercanias do nono círculo do inferno, na verdade a entrada que elegeu para devassar o coração da poesia.

Prado, Antonio Arnoni. “Um fantasma da noite dos vencidos.” In: ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 3.ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011

Enquanto Lovecraft descreveu monstros em formas de deuses, Augusto atribuiu deuses a vermes e parecia, de forma muito sutil, prever o próprio falecimento de pneumonia, igualando uma bactéria ao papel divino. Como se de um lado tivéssemos Lovecraft tratando do absurdo macrocósmico, e de outro, o brasileiro Augusto narrando o banquete da terra, ou do microcosmos.

O DEUS-VERME
Fator universal do transformismo,
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme — é o seu nome obscuro de batismo.

Augusto dos Anjos

Ao reafirmar que o Deus está “livre das roupas do antropomorfismo”, Augusto chocou a época vigente, e por isso mesmo teriam interpretado sua obra como a de um cético comum, ainda que estivesse arraigada no ocultismo simbólico latenta.

Augusto descreve o Deus-Verme, ou Deus da morte, que muitos interpretam como Cristo. Porém, ele estava muito mais interessado e próximo ao budismo, sem ser completamente cético como é sugerido:

Na existência social, possuo uma arma
— O metafisicismo de Abidarma —
E trago, sem bramânicas tesouras,
Como um dorso de azêmola passiva,
A solidariedade subjetiva
De todas as espécies sofredoras.

Augusto dos Anjos

Abhidhamma Pitaka é o terceiro cânone das escrituras budistas em que de uma forma quase científica, apresenta conceitos de como funciona a estrutura psíquica.

Neste ponto, é possível debater seu ceticismo em seu soneto para o filósofo  Friedrich Wilhelm Nietzsche. Ele escreve sobre os erros de Nietzsche, e dentre eles ter descartado o papel da divindade e sucunbido à loucura. Portanto, dizer que sua obra é cética, seria um argumento infundado.

Assim como Lovrecraft, Augusto faz alusão ao sarcasmo da indiferença universal:

Disse isto a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos,
Da luz da lua aos pálidos venábulos,
Na ânsia de um nervosíssimo entusiasmo,
Julgava ouvir monótonas corujas,
Executando, entre caveiras sujas,
A orquestra arrepiadora do sarcasmo!

Augusto dos Anjos

O simbolismo cientificista torna o poeta praticamente impossível de rotular. A toda hora pegando conceitos da psicanálise, do budismo, de termos não muito utilizados no dia-a-dia do homem comum. Sua poesia é irônica, icônica e universal. Em que ele mesmo se define como poeta louco, panteísta e irônico:

Era a elegia panteísta do Universo,
Na podridão do sangue humano imerso,
Prostituído talvez, em suas bases…
Era a canção da Natureza exausta,
Chorando e rindo na ironia infausta
Da incoerência infernal daquelas frases.

Augusto dos Anjos

Através do ritmo ensandecido de sua poesia, é possível ao leitor alcançar um estado de gnose para a prática mágica, especialmente voltada para o terror da indiferença cósmica. Para tanto, é possível regurgitar a leitura, como um portal místico e tentáculos de letras.

E assim, em paralelo, temos visões sobre o mesmo tema. Lovrecraft é a sístole universal, enquanto Augusto é a diástole:

Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, luzem…
E apenas encontrou na ideia gasta,
O horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as coisas se reduzem!

Augusto dos Anjos