Ser ou Não Ser: O Dilema do V-Prime

Ser ou Não Ser: O Dilema do V-Prime

Nessa série especial sobre o uso mágico das línguas, já tocamos em dois pontos: como a língua que falamos tem a capacidade de realmente alterar a forma como percebemos o mundo, e como as línguas podem ser usadas como ferramentas mágicas. Falamos sobre Enoquiano, Uraniano Barbárico, falar ao contrário, e alguns exercícios não exatamente práticos para uso no dia a dia. Então hoje vamos falar de uma modalidade linguística que qualquer um pode usar. São as linguagens prime – o E-Prime (o primo rico), mas também o V-Prime (a versão genérica) e o P-Prime (para falantes de português).

Essas línguas prime são exemplos reais de como mudanças simples no pensamento verbal acarretam grandes mudanças na consciência. E qualquer um que se propuser a mudar a forma de pensar pode aprendê-las, sem professor, sem cursos, sem estudo, sem pagar nada. Só com um mínimo de dedicação.

De onde veio o E-Prime, ou English Prime

Em 1949, o estudioso de semântica D. David Bourland Jr. propôs uma nova língua: o E-Prime. O nome é uma contração de English Prime, algo como Inglês Primordial. Resumindo, a diferença do E-Prime para o inglês normal é simples: basta não usar nenhuma forma do verbo to be (que significa ser ou estar). Não é permitido usá-lo em nenhum tempo verbal, nem em nenhuma das pessoas do discurso.

Uma das coisas incríveis do E-Prime é que a pessoa que fala é a única que precisa observar essas regras. A pessoa com quem ela se comunica não precisa de nenhum conhecimento específico. Na verdade, é comum que a outra pessoa nem perceba que estão conversando com ela em E-Prime.

Fugindo do inglês: E-Prime, V-Prime e P-Prime

Quase todas as línguas têm um verbo (ou mais) que cumprem a função do verbo to be do inglês. E é possível usar versões prime de praticamente todos os idiomas.

V-Prime é o nome que se dá à versão prime da língua vernacular, ou seja, a língua que se fala em uma determinada localidade. A língua vernacular do Brasil, por exemplo, é o português. Todo lugar tem um V-Prime para chamar de seu. No Brasil, como falamos o Português, nosso V-Prime é chamado de P-Prime.

Você pode estar se perguntando por que alguém deixaria de usar o verbo mais usado da língua. Talvez você esteja até mesmo se perguntando se isso é possível.

Sim, é possível. E mesmo que pareça um exercício complicado, há vários motivos para parar de usar este verbo.

Para que usar o V-Prime

Pode parecer que usar o verbo ser é a forma mais definitiva de fazer uma afirmação. Mas não é.

Quando se diz, por exemplo, “o céu é azul”, há aqui uma série de indeterminações. Uma pequena (e incompleta) lista:

  1. Quem acha que o céu é azul?
  2. O céu é mesmo azul? Ele nunca fica alaranjado ao cair da tarde, ou preto à noite?
  3. Como um daltônico enxerga esse céu?

Uma outra forma de dizer isso seria “o céu me parece azul”. Dessa forma, tudo fica mais definido. Respondendo às perguntas acima:

1: Fugindo da Indeterminação

Quem acha o céu azul sou eu (por causa do me). O simples uso do V-Prime faz com que evitemos as armadilhas da indeterminação. Isso pode parecer trivial usando o exemplo da cor do céu, mas pense, por exemplo, em uma manchete hipotética em um jornal: “novo juiz é a contra o aborto”.

Quem disse que o juiz é contra o aborto? Foi o próprio juiz quem disse isso? Será que alguém está deturpando suas palavras, ditas em outra ocasião, fora de contexto? Será intriga da oposição?

Essa mesma manchete poderia ser reescrita como “em entrevista coletiva, novo juiz afirma posição contra o aborto”. Ou como “grupos pró-aborto protestam contra novo juiz”.

Percebe como a eliminação do verbo ser acaba com a indeterminação?

2: Acabando com a Transitoriedade

Se eu digo que o céu me parece azul, está clara que essa é uma percepção situada em um ponto do tempo. Neste caso, o presente. Mas não quer dizer que, ao cair da noite, eu continue achando o céu azul.

Mais uma vez, o exemplo simples da cor do céu não possibilita perceber as implicações subjetivas. Mas consideremos outra manchete hipotética: “Cachoeiras de Belzebu é a cidade com maior número de satanistas no Brasil”.

De onde veio essa informação? Do censo de 2010? Se sim, pode ser que essa informação não esteja mais atualizada. Se não, seria interessante saber de onde tiraram esses dados. Porque, afinal, essas coisas mudam o tempo todo.

A manchete poderia ser reescrita como “censo de 2010 revela maior concentração de satanistas do Brasil em Cachoeiras de Belzebu”. Ou “pesquisa das redes sociais encontra a Meca dos satanistas brasileiros: Cachoeiras de Belzebu”. A primeira hipótese deixa claro que a informação tem pelo menos 7 anos de idade. A segunda forma, apesar de não especificar uma data, deixa subentendido que os dados em questão, além de não serem muito confiáveis, podem mudar a qualquer momento, como é da natureza das redes sociais. Fica claro que se trata de uma fotografia de um momento.

E, aproveitando o exemplo do juiz contra o aborto, será que ele não vai mudar de ideia em algum momento? Ele hoje pode adotar uma postura anti-aborto, mas quem sabe sua opinião daqui a alguns anos?

3: Eliminando o Viés Pessoal

Um daltônico pode enxergar o céu de forma diferente de uma pessoa com visão “normal”. Assim como uma pessoa com óculos escuros. De qualquer maneira, afirmar que o céu é azul é fundamentalmente errado, ou ao menos parcial, visto que pessoas diferentes podem ter opiniões diferentes sobre um mesmo tema.

Mais uma vez, o exemplo do céu não possibilita compreender a profundidade das implicações do viés pessoal. Vamos à nossa manchete hipotética: “Star Wars Vol. 42 é o melhor filme da série”.

Star Wars é muito parecido com religião. Cada um tem sua opinião, que muitas vezes se baseia em fundamentos emocionais, e não em fatos concretos. E essas opiniões individuais dificilmente são alteradas. Mesmo que todos os críticos de cinema do mundo concordem que o quadragésimo segundo filme realmente supera os demais, é importante deixar claro que essa é apenas a opinião dos críticos, e que os fãs não precisam concordar com ela.

Outras formas de escrever a manchete: “críticos de cinema elegem por unanimidade Star Wars Vol. 42 como o melhor filme da série”. Ou “segundo críticos, Star Wars Vol. 42 supera todos os outros filmes da série”.

Pode parecer contraditório, mas indicar quem está dando uma determinada opinião ou expressando sua visão não reforça o viés individual. Esclarecendo quem diz ou pensa o que, fica fácil saber que não se trata de um fato inegável, e que é possível expressar opinião contrária.

Mais clareza, menos dogmatismo

Resumindo, o uso do V-Prime traz mais clareza para as afirmações, e as torna menos dogmáticas. Nada é definitivo quando expresso em V-Prime.

O preconceito, por exemplo, cai por terra. É muito fácil dizer que “a raça X é inferior”. Mas ao colocar em V-Prime, alguém precisa dar a cara a tapa. É preciso dizer “Eu acho a raça X inferior”. Isso ao mesmo tempo expõe o indivíduo preconceituoso e deixa claro que se trata de uma opinião, e não de um fato.

Peter J. Carroll e o E-Prime

Em 1998, o magista-cientista Peter J. Carroll, autor do clássico Liber Null e Psiconauta, escreveu seu livro Psybermagick inteiramente em E-Prime, e sem usar “eu” e suas variações. Desde então, todos os seus livros foram escritos em E-Prime.

Sabendo de sua predileção por essa modalidade, nós da Penumbra fizemos uma entrevista com Peter J. Carroll inteiramente em V-Prime (nada foi previamente combinado). Você pode ler a entrevista na íntegra, em P-Prime, aqui.

Carroll se tornou um defensor do V-Prime como forma de comunicar ideias com clareza e de alterar tanto a forma de pensar como também a própria consciência, e até mesmo a realidade. Mas adotar o V-Prime em sua vida não é uma tarefa fácil, como você deve imaginar. E no próximo texto, que concluirá esta série, vamos dar instruções práticas para você fazer experiências com o V-Prime e avaliar, por conta própria, se as alegações a respeito dessa linguagem mágico-científica têm ou não fundamento.

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