Kalciferum - A Carta de Tarô

Kalciferum – A Carta de Tarô

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A Carta de Tarô

Bóris relaxava deitado em seu lugar preferido do apartamento, o braço esquerdo do sofá. Lá ele podia aproveitar toda a brisa da manhã graças à proximidade com a sacada.

O sofá ficava de frente para uma pequena tevê e perpendicular a uma confortável poltrona verde limão. Entre eles uma mesinha de centro com alguns bibelôs bregas e um vaso que o dono não teve coragem de jogar fora.

Atrás do sofá ficava um segundo ambiente, que servia de sala de jantar. Uma mesa de madeira antiga de seis lugares dividia espaço com uma cristaleira cheia de copos, taças e pratos.

Como na maioria dos apartamentos daquele prédio antigo, o chão era de taco de madeira escura, onde um tapete antigo fazia uma mescla de cores, não tão vivas como antes. As paredes eram de uma cor creme e o baixo teto conservava um grande ventilador, um modelo antigo que hoje funcionava de maneira pesada e cambaleante.

Cambaleante também era o dono do apartamento e de Bóris. Rafael se arrastou sonolento e se jogou no sofá como um fruto maduro demais para se manter no galho. Começou a acariciar o animal com esperança que o arisco gato o atacasse e pudesse de fato acordar. Ao invés disso, o gato rabugento se levantou e foi embora, enfezado.

Era o décimo quinto dia daquele mês e nenhum sinal que melhoraria de vida. As preocupações martelavam sua cabeça. Entraria a qualquer momento no sexto e último mês com o auxílio-desemprego que garantia a vida de baixo custo que levava. Mas não era por mal. A verdade era que ele tentava conseguir um trabalho que nunca apareceu.

Rafael abriu os olhos doídos pela luz matinal que entrava pela sacada. Colocou as mãos sobre o rosto e urrou enquanto tentava se livrar da sonolência. Imaginou um milhão de maneiras diferentes de morrer naquele momento de alguma forma cômoda, forçou os músculos em uma espreguiçada, metade sonolenta, metade tentando catapultar sua alma para fora do corpo. Não deu certo e ele se levantou.

Decidiu que era melhor ocupar sua mente com coisas mais úteis, serviços domésticos, por exemplo. Continuou andando pela casa como um zumbi trôpego e varreu tudo, tirou o pó de dias. Depois foi dar um jeito na louça e lavou o banheiro. No final das contas, descobriu que isso não o ajudou em nada, mas sua casa ficou limpa e isso ao menos o agradou. Já Bóris corria de um lado a outro, tentando fugir da agitação causada pelo dono.

Destrancou a porta e saiu do apartamento com duas sacolas de lixo, atravessou o corredor do andar e as depositou em uma lixeira ao lado do elevador. Pelo menos isso não é um desafio tão grande para mim, pensou pessimista, dando uma risada triste.

Quando voltava, sentiu o cheiro acre do lixo se misturando com um odor adocicado e bastante característico de incenso.

A porta vizinha de frente à sua se abriu e uma jovem surgiu.

— Bom dia — disse a garota. — Você mora aqui do lado?

Pego de surpresa, o rapaz pensou na possibilidade de olhar para os lados e verificar se a garota falava mesmo com ele, mas apenas os dois estavam ali. Rafael respondeu timidamente e se apresentou.

— Posso pedir um favor, Rafael? — Ariane perguntou com uma expressão de culpa. Sua voz era melodiosa e afável.

O rapaz balançou a cabeça, indicando que sim.

— Acabei de terminar a mudança, queria um pouco de açúcar…

— Sem problemas — respondeu, sem jeito. Foi até sua cozinha e pegou um pouco do açúcar que tinha.

Na trajetória entre a cozinha e a volta, tentou se lembrar do antigo vizinho, sem muito sucesso. Nunca o tinha visto, percebeu.

Ariane agradeceu com um sorriso tímido. Possuía mechas castanhas longas e onduladas, que usava em um meio rabo de cavalo, olhos cinzentos e amendoados. Vestia-se com uma camisa larga cor grafite e uma saia longa de estampa florida. Também usava vários acessórios artesanais, brincos, pulseiras e um colar.

— Sua cara… Você não me parece muito bem — afirmou, enquanto recebia o açúcar.

— Acho que não estou nos meus melhores dias. — Ou meses, pensou Rafael, talvez até anos.

— Quer uma consulta? – ergueu o açúcar. — Pelo favor?

Inicialmente Rafael não entendeu do que ela falava. Ficou desconfiado.

— Eu jogo tarô. Posso ver o que há de errado e dar conselhos sobre o futuro. — Sua voz o acalmava.

O rapaz não soube o que responder. De todas as coisas que ele poderia ser, “crédulo” não era uma delas. Cresceu em uma família tipicamente cristã, mas largou qualquer tipo de laço com a espiritualidade e o sobrenatural logo em sua adolescência. Seguia o mesmo princípio para o esoterismo, discos voadores e chupa-cabras. Para ele, tudo não passava de uma farsa manejada por charlatões em busca de ganho pessoal, se aproveitando da fraqueza alheia.

— Tudo bem — aceitou a proposta. Afinal, queria conhecê-la. Por mais louca que ela pudesse ser.

Entrou no apartamento com bastante curiosidade. O local era escuro e cheirava forte a incenso. Algumas caixas estavam empilhadas, esperando para serem arrumadas no novo espaço, mas vários móveis e objetos já estavam no lugar.

A garota o convidou para se sentar em uma poltrona e ele aceitou.

— Gosta de chá? — a moça perguntou.

— Gosto muito de chá! — mentiu. Odiava chá, mas não queria desagradar.

— Tenho no momento só marapuama e alecrim. Qual você prefere?

— Eu geralmente tomo erva-doce… — Era o único que conseguia lembrar. — Fica a sua sugestão.

Ariane o deixou sozinho e foi até a cozinha preparar as xícaras.

Enquanto esperava, Rafael observou o interior do apartamento quase vazio. A poltrona em que estava sentado era vermelha e coberta com um forro colorido de retalhos. Um leve tom violeta de mistério era dado ao cômodo, graças à luz do sol que invadia e atravessava a cortina. Não parecia haver nenhum objeto eletrônico, nada que pudesse dar a dica que estava em um apartamento do século 21. Um apanhador de sonhos estava largado em cima de uma das caixas e Rafael se lembrou de um péssimo filme adaptado de um livro que gostava muito.

Pôde escutar sua vizinha terminando o chá. Ela voltou carregando duas xícaras apoiadas em uma pequena bandeja de metal com alças e a colocou em uma diminuta mesa de madeira em frente à poltrona. Rafael recebeu a dele e experimentou. Estava amargo.

— E o açúcar?

— Não uso. Tira as propriedades do chá. — Bebericou a garota. — Algumas culturas consideram esse ritual bastante sagrado, mas para nós é apenas uma reunião sem compromisso. Quer que eu adoce o seu?

— Não precisa.

— Eu gosto de bolos, vou fazer um mais tarde. Não tive muito tempo para procurar algum mercadinho próximo. Sabe como é, correria da mudança.

Ariane se levantou e pousou a xícara na mesinha, foi até um pequeno armário e pegou um estojo marrom. De dentro, puxou um grande baralho de tarô e começou a embaralhá-lo na sua frente.

Ela puxou um banquinho pequeno e sentou-se de frente para ele.

Era rápida lidando com o baralho, lembrava uma crupiê de cassino, mas sem os movimentos exibicionistas. Parecia que tinha anos de prática. Rafael prestou atenção em cada movimento, tentando pegar algum tipo de truque para fazer com que ele escolhesse uma carta já planejada.

No final, ela colocou o baralho na mesa.

— Corte.

Rafael atendeu, dividindo o baralho em dois e colocando as duas colunas quase iguais uma ao lado da outra.

— Puxe duas cartas de cada pilha. Ah! Sim, use sempre sua mão esquerda, ajuda bastante.

Obedeceu cada passo, deixando duas duplas de cartas viradas para baixo. Lembrou-se como há quinze minutos estava em seu apartamento sem qualquer perspectiva de nada e agora jogava tarô com uma garota que mal conhecia.

— Vire a primeira.

A primeira carta, da primeira dupla, se revelou. A ilustração era bem colorida e elaborada, não a compreendeu inicialmente. Parecia algum tipo de carruagem sendo conduzida por alguém da realeza e sendo puxada por dois cavalos, um preto e outro branco.

— Carro — revelou Ariane.

— O que isso quer dizer? — perguntou.

— Quer dizer que você deve virar a próxima carta para que eu possa lhe dizer.

A próxima era a de uma torre sendo acertada por um relâmpago, com duas pessoas caindo de seu topo.

— Torre.

Ariane coçou a cabeça em silêncio, franzindo o cenho concentrada.

— O Carro significa uma “escolha” ou um “caminho a seguir” — explicou. — Mas ela está invertida. Quer dizer que você pode ter feito escolhas ruins e está bem perdido. Já a Torre nos diz que foi uma das piores decisões que já tomou.

Rafael a fitou. Aquele tipo de explicação era lógica, todos se arrependem de algo na vida, principalmente pessoas pessimistas como ele. Sem falar que alguém passando por um mau momento está obviamente perdido, de certa forma. Não o impressionava. Também havia desgraça, mas não se lembrou de ter sido causada por ele.

— Essas cartas falam do seu passado. Agora, faremos a mesma coisa para que eu possa dar a você uma sugestão do que deve evitar — pediu Ariane. 15diabo

A terceira carta era mais caótica que as primeiras. Parecia uma estrutura redonda de madeira presa ao chão por uma base. Alguns seres indefinidos pareciam amarrados nela.

— Roda da Fortuna! Bom, muito bom — acenou positivamente.

Quando virou a quarta e última, Ariane pôs as mãos sobre a boca.

A ilustração da carta lhe deu calafrios. Uma criatura estranha estava em cima de um pequeno altar, segurava uma espada na mão direita. Tinha um par de chifres e asas negras.

Ariane se ajeitou na cadeira e mordiscou o lábio inferior. Seu chá esfriava.

Uma brisa gélida entrou no apartamento pela sacada, levantando a cortina. A garota se levantou apressada, olhou para fora e fechou a porta de correr.

Provavelmente percebeu a expressão angustiada de Rafael, pois logo o acalmou.

— Não se preocupe, eu apenas estava em dúvida na interpretação das duas cartas. Não precisa ficar receoso.

— E então?

— Esse é o Diabo — apontou para a quarta carta.

— Isso quer dizer que o diabo me quer?

Ariane não conteve a risada.

— Não, é claro que não! O diabo não existe! Cartas de tarô são apenas arquétipos, não tem como ler literalmente. Essa em especial tem uma simbologia dúbia.

— Entendo — mentiu Rafael.

— A Roda da Fortuna representa o destino, a mudança… — apontou para a terceira. — Vai acontecer algo grande em sua vida. Já o Diabo representa a patética ilusão humana, a matéria sobre o espírito. Ligar essa carta à negatividade também é errado, ela pode indicar coisas positivas sobre seu futuro — suspirou. — Eu realmente não consigo interpretar muito bem, me desculpe. A verdade é que nunca fui muito boa na leitura das cartas como minha mãe.

— Não tem problema, ao menos foi divertido.

— Vou compensar pelo açúcar de outra maneira — sorriu. — Agora vou ter de dar uma saída, tenho um compromisso inadiável.

Rafael se despediu e agradeceu a gentileza. Saiu do apartamento e em dois passos estava novamente em casa. Um leve pensamento pairou pela cabeça. Algo soprou esperança em seu âmago, só não soube explicar o que havia sido.

E algo também o incomodava. O Diabo da ilustração parecia olhar diretamente para sua alma.


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Kalciferum - A Carta de Tarô

 

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